Raphael Mechoulam
Sua vida foi tema de um documentário de 2015 intitulado The Scientist ("O Cientista").
O cientista dedicou 55 anos a pesquisas na área — que hoje vive tanto uma efervescência sobre seus potenciais médicos e recreativos quanto preocupações sobre abuso e uso indiscriminado com o acesso facilitado à droga em vários países.
Pai enviado a campo de concentração
Mechoulam nasceu em Sófia, capital da Bulgária, no início dos anos 1930 — uma época que ele considerava menos turbulenta para a Europa Oriental.
"As feridas da Primeira Guerra Mundial não eram mais tão dolorosas e Hitler ainda era considerado uma curiosidade demente", disse o cientista em uma longa e detalhada entrevista de 2007 para uma publicação da Sociedade para o Estudo da Adicção.
"Meu pai, que tinha se formado em uma das melhores escolas médicas da Europa, em Viena, era um médico proeminente, chefe de um hospital, enquanto a minha mãe, que havia estudado em Berlim, aproveitava a vida de uma família judaica bem de vida."
Mas a Segunda Guerra logo começou e o governo búlgaro resolveu apoiar o regime nazista alemão.
"Leis antissemitas tornaram nossa vida quase insuportável. Meu pai aceitou um posto como médico em um vilarejo, sem água encanada ou eletricidade, achando que estaria mais seguro no interior. Mudávamos de vilarejo em vilarejo com o passar dos anos."
"Meu pai foi mandado para um campo de concentração dentro da Bulgária, mas tivemos sorte: todos nós sobrevivemos."
Em 1944, o território búlgaro entrou dentro da esfera da União Soviética e um governo comunista foi estabelecido.
"Senti que minha vida estava entrando numa torrente de lavagem cerebral, mas eu lembro com gratidão dos ótimos professores de uma escola de Sófia que fizeram o seu melhor em circunstâncias muito difíceis."
Em 1949, a família Mechoulam resolveu emigrar para Israel.
O caminho para estudar a cannabis
Mechoulam começou a estudar química em Israel e começou a desenvolver pesquisas sobre inseticidas no Exército. "Insetos sempre foram uma praga no Oriente Médio", disse o cientista.
Mais tarde, seu trabalho de doutorado se concentrou na química sintética, mais especificamente no campo de esteroides.
"Eu vi nessa pesquisa, que estava bem na fronteira entre a química e a biologia, algo fascinante. Acredito que a separação entre campos científicos é apenas uma admissão de nossa habilidade limitada para aprender e entender áreas da ciência diversas. Na natureza, essas divisões não existem."
Ele decidiu estudar cientificamente a maconha ao notar que "nos anos 1960 era um campo quase totalmente negligenciado" que "estava maduro para uma nova investigação".
"Havia estudos do século 19 em muitas línguas. Como nasci na Europa, tive que aprender muitas idiomas — incluindo francês, alemão e russo — em que estavam escritas a maioria dessas pesquisas. Encontrei e li muitas e muitas publicações científicas obscuras e esquecidas."
O israelense percebeu que métodos dos séculos passados não eram capazes tecnicamente de isolar em forma pura os constituintes ativos da cannabis. Era um campo a ser desbravado.
Primeiras pesquisas foram na ilegalidade
A condição de substância ilícita da cannabis era uma grande dificuldade para as pesquisas na época em todo o mundo, com a necessidade de adoção de grandes medidas de segurança.
"Mesmo [com uma amostra] obtida legalmente, o trabalho em laboratório era um pesadelo", conta.
Mechoulam tentou conseguir material para pesquisa na polícia. Um agente ligou para o chefe do departamento de investigação — que era um antigo colega do cientista nas forças armadas israelenses.
"Ouvi o policial perguntar: 'Ele é confiável?'."
Com a resposta positiva, Mechoulam foi orientado a se dirigir à capital Tel Aviv onde obteria 5 quilos de haxixe (uma variação resinada da maconha), de procedência do Líbano, que haviam sido apreendidos.
"Peguei um ônibus de volta e nenhum dos passageiros percebeu que o cheiro forte da minha bagagem vinha do haxixe. Mais tarde eu percebi que eu e o chefe de investigação da polícia havíamos desrespeitado várias leis de narcóticos do país. O Ministério da Saúde era encarregado de liberar essas substâncias, não a polícia."
Depois, o suprimento do material de pesquisa seria regularizado.
A descoberta do THC
O canabidiol (CBD), a principal substância não psicoativa da maconha, já havia sido isolado, mas sua estrutura era ainda pouco conhecida.
O componente vem sendo usado atualmente como base de remédios para ansiedade, problemas de sono, dores crônicas (embora muitos apontem exageros propagados pelo mercado sobre os possíveis benefícios do CBD).
Ele e um colega estudaram a substância com um equipamento de ressonância magnética.
"A publicação sobre CBD não causou impacto científico. Com o passar dos anos, no entanto, o interesse no CBD gradualmente aumentou. Agora [em 2007] existem centenas de publicações. É um potente agente anti-inflamatório."
Ao relembrar esse período, Mechoulam ressaltou o trabalho pioneiro do brasileiro Elisaldo Carlini para descobrir as propriedades antiepilepsia do CBD.
O israelense, no entanto, é lembrado por isolar e batizar o tetrahidrocanabinol (THC), principal composto psicoativo da cannabis que, diferentemente do CBD, "dá barato".
Ele atua no "sistema endocanabinoide" do cérebro, que são receptores que respondem aos componentes químicos da cannabis.
Os receptores de cannabis são densamente povoados nas áreas pré-frontais e límbicas do cérebro, envolvidas na recompensa e na motivação. Eles regulam a sinalização das substâncias químicas cerebrais dopamina, ácido gama-aminobutírico (GABA) e glutamato.
Sabemos que a dopamina está envolvida na motivação, recompensa e aprendizado. O GABA e o glutamato desempenham um papel nos processos cognitivos, incluindo aprendizado e memória.
"Gradualmente cientistas de várias áreas perceberam que o campo da cannabis estava pronto para novas investigações e desde então há milhares de publicações sobre o THC. Vem sendo usado como uma droga terapêutica contra náuseas e para abrir o apetite", afirma Mechoulam.
Ele prosseguiu seus estudos para isolar e obter mais informações sobre os outros canabinoides existentes na planta.
'Nunca usei maconha'
Em entrevista à revista Culture em 2017, o cientista fez uma revelação surpreendente: nunca usou maconha.
"Como eu fazia pesquisa e tínhamos um suprimento oficial de cannabis, obviamente se usássemos por razões não científicas e soubessem nossa trabalho seria paralisado. Basicamente, nem eu nem meus estudantes estávamos interessados nisso."
Mas em entrevista à rádio BBC veiculada no ano passado, ele contou uma história diferente: sua esposa fez um bolo de maconha e ele e seus colegas comeram uma fatia com o equivalente a 10 miligramas de THC.
"O THC agiu de forma diferente em cada um de nós. Um sentou, relaxou e não fez nada, outro disse que 'não estava sentindo nada' e ficou em silêncio por uma hora. Uma amiga sentiu medo, ela achou que sua personalidade estava mudando. Mas tínhamos um psiquiatra conosco e ela relaxou."
Em seus últimos anos, Mechoulam já havia se aposentado, mas participava de conferências e acompanhava os últimos estudos da área.
Em uma entrevista ao blog da BMC, uma editora de publicações científicas, ele afirmou que o futuro das pesquisas estaria em estudar substâncias no corpo humano que agem como endocanabinoides, receptores biológicos de substâncias como THC e CBD.
"Esses compostos que agem como endocanabinoides devem ter algum papel. Mesmo não estando claro, acredito ser possível que os diferentes perfis desses compostos possam ser ao menos parcialmente responsáveis pelas nossas diferenças em comportamento, talvez uma base molecular para a personalidade", disse.
"Além disso, esses compostos talvez tenham um papel na defesa do corpo contra doenças. É difícil de acreditar que o corpo humano não possua mecanismos alternativos para lidar com doenças em que o método anticorpos x antígenos do sistema imunológico não seja relevante."
Esse texto foi publicado em
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1085l21ee0o
Créditos: Shin Suzuki